Escore quick SOFA não é adequado no departamento de emergência para screening de morte e necessidade de UTI.
Estudo observacional retrospectivo.
Inspirado na aula do Prof. Dr. Victor Paro (UFPI) sobre sepse (disponível online e altamente recomendada), decidi avaliar um dos artigos que mostrou que o qSOFA não é um instrumento adequado no departamento de emergência. Os autores Matthew Churpek, Ashley Snyder, Xuan Han, Sarah Sokol, Natasha Pettit, Michael Howell e Dana Edelson publicaram na revista American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine de 1 de abril de 2017 o artigo: “Quick Sepsis-related Organ Failure Assessment, Systemic Inflammatory Response Syndrome, and Early Warning Scores for Detecting Clinical Deterioration in Infected Patients outside the Intensive Care Unit.”
Trata-se de estudo observacional retrospectivo unicêntrico (serviço acadêmico com 500 leitos) em prontuários do período de novembro de 2008 a janeiro de 2016. Pacientes sem sinais vitais ou dados laboratoriais foram excluídos. Pacientes em ventilação mecânica ou uso de medicações vasoativas antes da suspeita de infecção também foram excluídos.
Esse critério que levou à exclusão dos pacientes (não ter sinais vitais ou dados laboratoriais) pode estar ligado ao desfecho: pacientes que chegam muito graves podem não ter oportunidade de coleta de exames ou então salas de emergência muito lotadas por pacientes graves dificultam o preenchimento adequado de prontuários médicos. Em estudos observacionais, fatores ligados à definição da exposição e ao mesmo tempo ligado ao desfecho enviesam o estudo. No entanto, a falta de dados pode ter outras razões mais comuns para acontecer.
Suspeita de infecção foi definida como (1) solicitação de hemocultura seguido de início de antibiótico em até 72 ou (2) antibióticoterapia seguida por solicitação de cultura dentro de 24 horas. Antibióticos profiláticos e via oral foram excluídos dessa definição.
A acurácia dos critérios SIRS, qSOFA, MEWS e NEWS foi avaliada.
O desfecho primário do estudo foi mortalidade intrahospitalar e o desfecho secundário foi composto por morte e internação em UTI. Foram realizadas as seguintes análises de sensibilidade: (1) limitando os pacientes incluídos àqueles que atendiam o critério de sepse CID-9 e (2) calculando a acurácia somente para pacientes com choque séptico.
Foram utilizados os testes t, Wilcoxon rank sum e qui-quadrado. Utilizou-se o maior valor de cada escore durante a internação antes da admissão à UTI. Caso algum valor estivesse ausente em um ponto temporal, os demais do mesmo setor foram combinados. A comparação de acurácia foi feita com a sensibilidade, especificidade, área sob a curva ROC. Foi considerado significativo um p-valor bicaudal menor que 0,05.
O teste t (também chamado de teste t de Student) é um teste que compara distribuições normais (média e variância) de dois grupos. O teste de Wilcoxon (também chamado de teste U de Mann-Whitney) compara dois grupos mas com distribuições não normais. O teste de qui-quadrado compara categorias de dados observados ao esperado.
Foram encontrados 445.073 registros de pacientes. Desses havia dados completos de 150.288 pacientes, dos quais 30.677 tinham solicitação de hemocultura e prescrição de antibiótico nos tempos definidos acima. No departamento de emergência foram 60% dos pacientes e o restante nas enfermarias. Havia diferenças relevantes entre os pacientes provenientes da emergência e da enfermaria. Na emergência havia mais mulheres, pessoas de cor preta e com maior chance de passar pela UTI. No entanto, os pacientes provenientes da enfermaria tinham maior mortalidade hospitalar e maior tempo de internação após suspeita de infecção.
Após apresentar os critérios de inclusão do estudo, 7.120 (23,2%) dos pacientes internaram em leito de UTI e 1.649 (5,4%) pacientes morreram. O desfecho secundário composto ocorreu em 7.385 pacientes. O tempo mediano para o desfecho secundário foi de 14 horas (variou de 6 a 66 horas).
O critério SIRS alterado (dois ou mais critérios) foi detectado em 27.097 (88%) pacientes enquanto que 11.729 (38%) tinham dois critérios qSOFA. A área sob a curva com intervalo de confiança (IC) 95% para os quatro critérios para detecção de mortalidade foram:
NEWS: 0,77 – IC 95% 0,76 a 0,79
MEWS 0,72 – IC 95% 0,71 a 0,74
qSOFA 0,69 – IC 95% 0,67 a 0,70
SIRS 0,65 – IC 95% 0,63 a 0,66
A avaliação dividindo os pacientes de acordo com a proveniência mostrou que o desempenho dos escores era numericamente superior no departamento de emergência em comparação à enfermaria.
A sensibilidade e especificidade dos escores em pontos de corte clássicos para mortalidade foi de:
SIRS – ≥2 – Sens: 93,8% e Esp: 12,3%
qSOFA - ≥2 – Sens: 68,7% e Esp: 63,5%
MEWS - ≥5 – Sens: 71,4% e Esp: 65,0%
NEWS – ≥5 (ou um parâmetro com valor de 3) – Sens: 95,1% e Esp: 15,0%
O tempo entre o escore e o desfecho composto foi de:
SIRS – 17 horas
NEWS (≥7) – 12 horas
qSOFA (≥2) – 6 horas
As análises de sensibilidade foram bastante similares.
Os autores citam as seguintes limitações de seu estudo: investigação unicêntrica, não há padrão ouro para o diagnóstico de sepse e avaliaram apenas dois entre dezenas de escores de alerta precoce existentes.
Trata-se de um estudo voltado à definição de critérios diagnósticos. É um estudo necessário, mas não consegue determinar a melhor abordagem. A partir de um estudo como esse podemos propor um estudo comparando dois ou mais protocolos diferentes para o departamento de emergência (e enfermaria). O tipo de estudo mais indicado seria um ensaio clínico randomizado multicêntrico de clusters. Múltiplos departamentos de emergência seriam randomizados para utilizar diferentes gatilhos de critério para a triagem (por exemplo, NEWS ≥ 5 ou 7 ou SIRS ≥ 2). Vários fatores entram em jogo. O tempo entre a positividade do escore e o desfecho indica a janela de atuação clínica para que as medidas do protocolo de sepse entrem em ação. As sensibilidades e especificidades dos diferentes pontos de corte definem pacientes que terão o protocolo de sepse iniciado e pacientes que poderão até ter alta com antibióticoterapia via oral domiciliar.
O que é possível inferir desses estudos e levar para o ambiente clínico é que o desempenho do qSOFA ≥ 2 é ruim para uma situação de screening. Temos o menor tempo de ação com esse critério e temos uma sensibilidade relativamente baixa (68,7%). Na diretriz da campanha de sobrevivência a sepse, nenhum dos critérios é eleito como o indicado, mas o qSOFA é isolado como não indicado:
Não se recomenda a utilização do qSOFA (comparado à SIRS, NEWS ou MEWS) como uma ferramenta de rastreio para sepse ou choque séptico.
Recomendação forte, evidência de moderada qualidade
Esse é um tipo de estudo observacional, um registro do que acontece com a evolução de pacientes com suspeita de infecção antes do ambiente crítico e é uma pedra fundamental para o desenvolvimento de protocolos científicos mais elaborados em cima.
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